(com Julien Rebotier)
04/08/2014
Um ano após a morte do então presidente Hugo Chávez, o governo venezuelano parece hesitar sobre qual caminho seguir. As dissensões internas entre os radicais e os reformistas ameaçam a continuidade do chavismo no poder?
Ao longo dos três primeiros meses do ano, o poder venezuelano teve uma prioridade: exibir sua união diante da oposição e das tentativas de desestabilização apoiadas por Washington. Há algumas semanas, porém, o mundo político vive no ritmo da publicação de cartas abertas de antigos altos dirigentes chavistas pouco preocupados em atrapalhar com suas críticas o atual presidente, Nicolas Maduro.
Não é de agora que o movimento chavista descobre as controversas públicas: rupturas, cisões e recomposições marcaram sua história. Podemos lembrar as dissidências do Movimiento Al Socialismo(2002), de uma fração do Patria para Todos (2010) ou ainda do líder William Ojeda (2005). Em muitos desses casos, sinal das flutuações características do chavismo, os rebeldes acabaram por retornar ao seio da coalizão. Fato novo: o ex-presidente Hugo Chávez, falecido em março de 2013, não está mais lá para arbitrar e repensar as alianças estratégicas.
Tudo começou com a mensagem de Jorge Giordani, publicada em 18 de junho de 2014. Na véspera, Maduro informara-o sobre seu afastamento do posto de ministro do Planejamento, que ele havia ocupado de forma quase ininterrupta desde a chegada de Chávez ao poder, em 1999. Exibindo a ambição de “assumir suas responsabilidades diante da história”, o arquiteto das políticas econômicas bolivarianas arrasou o presidente: “incompreensão dos mecanismos econômicos”, incapacidade de “dar impulso a uma liderança”, falta de “coerência”.
Giordani condenou igualmente “a interferência de conselheiros franceses”, que teria travado a aplicação de seu próprio programa de estatização crescente da economia. Segundo o intelectual alemão Heinz Dieterich, outrora próximo do governo venezuelano, Caracas, ao se ver na impossibilidade política de apelar para o Fundo Monetário Internacional (FMI), teria solicitado a ajuda de Matthieu Pigasse, diretor-geral do Banco Lazard, coproprietário do grupo Le Monde e consultor dos governos equatoriano e argentino para a reestruturação de suas dívidas. Ele teria encarregado o francês de contribuir para o “salvamento” do “Titanic bolivariano, que entrara em colisão com o iceberg do capitalismo, da corrupção e da incompetência”. Graças a ele, em 13 de junho de 2014, o vice-presidente do Conselho de Ministros para a Área Econômica e ministro do Petróleo, Rafael Ramírez, encontrou cerca de cinquenta investidores internacionais nos salões do hotel Claridge’s em Londres para tranquilizá-los sobre o estado da economia venezuelana.4
Outro documento tinha suscitado algumas ondas no início de junho: aquele redigido por Temir Porras, um próximo de Maduro, formado na École Nationale d’Administration (ENA) em Paris. Responsável pela campanha do candidato chavista na eleição presidencial de 2013, Porras evoca uma política monetária “que lembra mais o funcionamento de um cassino do que o de um banco central” e apela ao “pragmatismo”, “uma virtude extremamente necessária nas circunstâncias complexas que atravessamos”.
Apesar da avalanche de artigos na imprensa, tanto na Venezuela como no estrangeiro, tal conflito não é surpresa num país onde, há bastante tempo, os pragmáticos dominam. A ilusão de óptica se explica facilmente: o chavismo nunca reuniu militantes fiéis a um corpusdoutrinal. Desde o início dos anos 1990, pelo contrário, ele agregou em torno de sua figura tutelar posturas políticas e correntes de pensamento muito diversas, tendo por base comum certas prioridades, como a afirmação de um Estado forte e soberano, ou a necessidade urgente de remediar as desigualdades. Como bom estrategista, Chávez conseguia levar adiante uma linha, apesar das contradições – por vezes profundas – entre discursos teóricos e medidas concretas.
Assim, a revolução bolivariana manteve o modelo econômico baseado na renda do passado, contando com o afluxo de capitais estrangeiros, sobretudo no setor petrolífero, no qual a exploração reside nas sociedades mistas que associam o Estado a empresas estrangeiras. Ao longo dos anos 2000, as taxas de pobreza baixaram fortemente, as desigualdades foram reduzidas, mas sem transformação profunda do sistema tributário ou do aparelho produtivo. Não somente a alta do consumo dopa a atividade dos importadores (e fragiliza as contas externas), como, apesar dos uivos de indignação da imprensa contra as “nacionalizações”, a parte do setor privado se mantém: ela representa entre 58% e 62% do PIB. Em resumo, o laboratório do “socialismo do século XX” jamais voltou as costas a uma realpolitik nem sempre compatível com seus projetos de transformação da sociedade a longo prazo.
Além disso, o chavismo, enquanto teoria prática do poder, caracteriza-se por um jogo de alianças constantemente rompidas e reatadas: difícil, nessas condições, fixar as fronteiras das diversas tendências. Sintomático desse movimento perpétuo, para além das ideologias: a proximidade entre o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, considerado um dos representantes da corrente “de direita”, próximo do Exército, e diversos coletivos da esquerda radical.
As “polêmicas internas” que recentemente surgiram na cena pública nascem sobretudo de divergências quanto à prática do governo ou da administração do Estado. Na Venezuela como em outros lugares, elas traduzem em termos facilmente identificáveis rearranjos políticos estratégicos mais delicados para expor aos militantes: “direita contra esquerda”, “pragmático contra radical” transformam assim lutas de poder em nobres batalhas políticas.
O período atual, no entanto, caracteriza-se mais por uma ruptura do frágil equilíbrio de ontem. Com Chávez ausente, uma espécie de união sagrada havia se constituído no seio do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). É sem dúvida sob essa óptica que é preciso ler a enxurrada de críticas endereçadas a Giordani, cujas declarações ameaçam menos a homogeneidade ideológica do chavismo que sua unidade política.
As contradições internas à dinâmica bolivariana se intensificaram depois da morte de seu iniciador. Chávez personificava o Estado e o processo político; mas o que funcionava sozinho não mais o faz. A precariedade da situação apela com cada vez mais força pela consolidação das instituições (Estado, justiça) em torno de um modelo de sociedade de um lado e do esclarecimento do papel do PSUV de outro. Se o partido não consegue se impor como uma força de proposição ideológica que coloque em debate – e defenda – um projeto, o movimento só tem como horizonte as linhas de fuga. A versatilidade da atualidade política entrava o projeto de transformação social. A anomia espreita onde a desconfiança reina e onde as instituições que conferem consistência às escolhas ideológicas permanecem frágeis.
A recomposição pós-Chávez é o desafio principal do processo bolivariano se quisermos conservar o campo de atração social construído até aqui. Apesar das cassandras que predizem invariavelmente o fim da revolução bolivariana, muito esperto será aquele que souber presumir novas configurações desse processo em perpétuo movimento